Inspirada por estudos do professor Erick Hollnagel, este texto pretende apresentar um resumo sobre a evolução histórica dos modelos mentais presentes na forma como atuamos em segurança do trabalho e provocar uma reflexão sobre o quanto nos sentimos prontos para atuar nesse tempo complexo em que vivemos.
A preocupação em evitar falhas, incidentes e acidentes vem acompanhando a humanidade ao longo de sua trajetória. Esse conceito se transformou ao longo da história, na medida em que a sociedade foi se tornando mais complexa.
Vamos começar pelo começo?
A segurança como uma área do conhecimento quase sempre esteve sustentada na probabilidade de reduzir acidentes e minimizar falhas, utilizando em especial a padronização operacional e cumprimento de regras. Os primeiros estudos relacionados às doenças ocupacionais remontam ao século XVI, na Europa, principalmente com casos ligados à mineração.
A segurança industrial, assim como a própria indústria, surge no Reino Unido, na segunda metade do século XVIII. É lá também que estão os primórdios da preocupação com a segurança. Isso começou em 1802 com a chamada Lei de Fábrica (Factory Act) que, inicialmente, estabelecia limites ao trabalho de mulheres e crianças. Ao longo de séculos, a lei foi sendo reeditada e aprimorada.
Esse período da segurança que começa na Revolução Industrial é chamado de era tecnológica e envolve a publicação dos primeiros trabalhos relacionados à prevenção de acidentes.
Essa era é marcada pela criação da OIT (Organização Internacional do Trabalho) em 1919 e inclui a publicação do livro Industrial Accident Prevention de Herbert Heinrich, em 1931. Neste material, ele apresenta a tese de que todo acidente teria uma causa ou várias, combatendo a ideia de fatalidade presente até então. A obra de Heinrich é a base para a criação da renomada Pirâmide de Frank Bird, em 1969.
No começo dos anos 70, é criada na França a árvore de falhas que avança na consideração de múltiplos fatores como causa dos acidentes. O método foi bastante descaracterizado ao longo do tempo. Em sua gênese ele já aborda o conceito da variação e fatos habituais no ambiente de trabalho.
Entrando na era dos fatores humanos.
A partir de 1979, o acidente nuclear na usina Three Mile Island (EUA) introduziu o fator humano na análise e investigação de acidentes. A chamada era dos fatores humanos trouxe uma ideia de que os humanos são perigos que precisam ser controlados por meio de treinamentos, procedimentos e muita auditoria para verificação de conformidade. Houve uma diminuição contínua de acidentes ligados a processo, mas o excesso de formalismo e burocracias não resultou em uma redução de falhas.
Próxima parada: era da gestão de segurança.
A explosão do ônibus espacial Challeger, em 1986, fez surgir um outro fator para o diagnóstico de acidentes: as condições organizacionais. Foi quando iniciou a era da gestão de segurança. Em 1990, o psicólogo inglês James Reason publica a famosa teoria do queijo suíço que é, ainda hoje, uma grande referência para o entendimento dos fatores humanos de forma menos estereotipada do que na era anterior, já que ela dá ênfase às responsabilidades da empresa na ocorrência de acidentes.
A década de 1990 é marcada por reestruturações, reengenharia e o início da globalização no mundo do trabalho. Esses fatos têm reflexos na evolução da segurança. Novos conceitos surgem, a psicologia na segurança se fortalece e alguns importantes pesquisadores da área contribuem para esse avanço.
Diferentes pesquisas, diferentes avanços.
O psicólogo norte-americano Scott Geller introduziu importantes conceitos da psicologia comportamental para a segurança do trabalho. Uma das principais contribuições é o conceito de cuidado ativo. Ao longo de sua extensa vida acadêmica de mais de 50 anos, ele publicou estudos sobre comportamento humano, percepção de risco, tomada de decisão, cultura de segurança e sobre a participação das pessoas na construção de resultados em segurança.
Outra contribuição importante veio de Thomas Krause, também psicólogo dos Estados Unidos, referente ao papel da liderança para atuar e estimular comportamentos e uma cultura de cuidado em segurança do trabalho. Uma importante pesquisa de campo realizada pelo autor aponta quais são as práticas comuns mais frequentes entre os líderes que efetivamente atuam para estimular a segurança nos ambientes de trabalho.
Nesta mesma época, Hollnagel introduz o conceito de safety II, reconhecendo que os trabalhadores não são capazes de controlar todas as variáveis que interferem no trabalho e que muitas vezes é preciso encontrar uma solução alternativa para entregar a produtividade esperada. Assim nasce a ideia da “variabilidade de desempenho”, em que uma pessoa não é vista como um perigo a ser controlado, mas como alguém que pode variar o desempenho para se ajustar às mudanças nas condições do ambiente de trabalho.
Uma nova era que chega para ampliar percepções.
É curioso pensar que a psicologia da segurança tenha ganhado corpo e espaço na era da gestão de segurança, que trouxe luz sobre as condições organizacionais como fator contribuinte para a ocorrência de acidentes. Mas é justamente essa ampliação de percepção sobre o fator humano que a psicologia propõe: compreender a complexidade que existe ao abordar uma temática que envolve pessoas em ambientes coletivos. Quantas variáveis e fatores de influência estão presentes quando estamos reunidos em torno de um objetivo comum, dentro de um contexto organizacional?
E de maneira muito veloz, antes mesmo de se consolidar esse modelo mental que leva em conta como a gestão de segurança de uma organização como um todo interfere na segurança das pessoas, os impactos profundos gerados pela aplicação das novas tecnologias, internet das coisas e a integração de sistemas produtivos deu início a era da complexidade cognitiva. Esse período está marcado por mudanças constantes, velozes e imprevisíveis e requer um novo paradigma para a segurança.
Nessa era, a atual, novas descobertas sobre ciência cognitiva e complexidade são aplicadas para dar sentido à segurança. Uma das descobertas importantes é de que o cérebro humano não é uma máquina lógica de processamento de informações. A força do cérebro não está em armazenar e recuperar informações, mas em reconhecer padrões. As pessoas são contadoras de histórias naturais, revela o estudo, e ao contar histórias de segurança ou narrativas sobre eventos passados, um trabalhador revelará sentimentos e percepções que perguntas diretas não conseguiriam revelar. As histórias também são melhores para descrever situações complexas, pois fornecem o contexto em que elas são vivenciadas.
Estamos preparados?
Olhando essa retrospectiva histórica sobre os modelos mentais presentes a cada era da segurança, nota-se que até duas eras atrás a chave para o sucesso era identificar riscos conhecidos. No entanto, Erik Hollnagel salienta que este também é um ponto fraco quando olhamos com a lente da atualidade:
“Podemos proteger-nos contra tudo o que podemos imaginar. Mas não podemos imaginar tudo. Portanto, não podemos nos proteger de tudo.”
Desde a era da gestão da segurança, as empresas têm sido estimuladas a confiar no julgamento e na experiência humana para ajustar o comportamento na ausência de procedimentos de risco explícitos, ou quando as regras atrapalham, ou quando mudanças inesperadas nas condições de trabalho sinalizam o surgimento de perigo. Isso envolve dar passos na direção de ações mais colaborativas, em contextos que favoreçam a segurança psicológica necessária para que as pessoas possam expor suas dificuldades e desafios do dia a dia, bem como a forma como tem conseguido resolvê-las.
No entanto, esse é um desafio para grande parte das organizações. Na minha experiência, vejo muitas organizações atuando com modelos mentais da era tecnológica querendo resultados na atualidade que pede outros repertórios. Ainda ouço discursos de diretores e presidentes de organizações que repetem frases como: 80% dos acidentes são causados pelo comportamento (uma máxima difundida na década de 90) ou ainda que “todos os acidentes podem ser evitados”.
Este texto é um convite à reflexão e ampliação de visão em especial para os profissionais da área de Segurança. Mas também é útil para líderes e demais interessados no tema que buscam o primeiro passo na tomada de consciência. Ao acessar esse conhecimento, pode-se iniciar uma mudança de modelo mental que, na sequência, pode mudar uma maneira de atuar.
Você está preparado para a era da complexidade cognitiva?