Como uma escuta de qualidade impacta na identificação de erros?

A mentalidade e o entendimento que cada organização tem sobre o tema do erro humano é um eixo central de onde derivam grande parte das intervenções e ferramentas da área de saúde e segurança do trabalho. Neste texto pretendo explorar diferenças marcantes entre um paradigma antigo sobre os erros e outro mais moderno, bem como apresentar possibilidades para atuar minimizando possíveis falhas.

A maneira mais comum de se compreender o erro humano é o colocando como um desvio de um procedimento padrão. Neste cenário, parte-se de um pressuposto de que é possível descrever o funcionamento dos processos produtivos e das regras de forma detalhada e treinar uma pessoa para seguir essa prescrição. 

Quando acontece algo de “errado” pode-se, então, partindo daquilo que estava prescrito, decompor o problema em partes até chegar à causa – que naturalmente é associada a alguma falha cometida por alguém. Os erros, portanto, são ações a serem evitadas e banidas a qualquer custo dentro da organização. 

Mas será que este é o único caminho?

O problema desta perspectiva de compreensão sobre os erros é que ela desconsidera a variabilidade dos processos produtivos, das pessoas e das máquinas. Todos esses aspectos são mutáveis, estão em constante alteração e sofrem influência de inúmeras variáveis ao longo do tempo. 

Além disso, nenhum procedimento ou protocolo consegue descrever todo tipo de situação à qual uma pessoa vai estar exposta ao realizar qualquer tipo de atividade de trabalho, o que requer que as pessoas desenvolvam um senso de análise crítica para tomada de decisão, e não somente sigam procedimentos. Afinal de contas, nem tudo o que é considerado um erro (um desvio de padrão, quebra de regras) leva a um acidente. Às vezes, inclusive, contribui para entregar resultados.

As empresas que ainda vivem com esta “lente” de entendimento sobre os erros das pessoas, costumam ter características comuns como:

  • Líderes autoritários – as características de comando e controle caem muito bem nesse contexto já que a crença é de que as pessoas precisam fazer o que está escrito no procedimento e os líderes são aqueles que devem garantir que elas os sigam. Assim se cria e se sustenta um ciclo de dependência e codependência entre líderes e liderados, que é bastante difícil de se superar. 
  • Burocracia garantia de que os processos estão sendo desenhados e prescritos da forma “certa”. E quanto mais erros e acidentes, mais burocracia, check lists e programas são implantados na ânsia de gerar adesão do comportamento das pessoas ao que está prescrito.
  • Baixo senso crítico – quando a função das pessoas é seguir ao que está descrito nos padrões, perde-se a grande oportunidade de desenvolver o senso crítico e aumentar o repertório de entendimentos para que as pessoas tomem decisões cada vez melhores e mais alinhadas aos princípios e propósitos da organização.
  • Obediênciaobviamente a empresa terá pessoas obedientes, que seguirão aquilo que está sendo proposto. Aqueles que desvirtuam e fogem às regras não são bem-vistos e recebem correção frequente dentro de ambientes assim. 
  • Ambiente de medo – as pessoas sentem receio de participar de fóruns e reuniões, porque sentem que existem alguns assuntos que são quase “tabus” dentro da empresa. Falar sobre algum possível erro, problemas identificados e riscos de acidentes pode demonstrar fragilidade ou expor que a pessoa não está seguindo alguma regra ou padrão estabelecido. Então é melhor não falar sobre isso. Em muitos casos, as pessoas que se encorajam e expõem uma situação de erro são advertidas verbalmente e recebem um verdadeiro sermão por não terem adotado a ação conforme o que era previsto. E o ambiente de participação acaba se restringindo cada vez mais. É possível participar, desde que se fale somente o que é politicamente adequado e aquilo que os líderes esperam ouvir (em conformidade com padrões e regras). 

Mas os tempos são outros.

Esta ainda é a forma de entender e atuar sobre erros que vigora em muitas organizações nos dias de hoje. No entanto, não há mais como tapar o sol com a peneira. A era da complexidade chegou para questionar nossos eixos de entendimento sobre o mundo e sobre as pessoas. Não seria diferente com a noção de erro humano. 

Neste novo modelo mental, os erros são compreendidos como parte da variabilidade da atuação de qualquer ser humano. São normais, vão acontecer em diferentes situações sejam elas dentro do contexto de trabalho ou não. Os erros são entendidos como efeitos, sintomas de problemas mais profundos, estando conectados sistematicamente aos recursos de trabalho, ferramentas, tarefas e ambientes onde as pessoas trabalham – e não mais tidos como causa. O que muda é que nesse entendimento os erros humanos são esperados e não evitados. Isso não quer dizer que está tudo bem errar, muito pelo contrário. O fato do erro ser esperado significa que teremos um ambiente em que as pessoas vão compreender que na lacuna entre o trabalho que está prescrito nos procedimentos e regras e na execução efetiva do trabalho (trabalho real), existe um espaço em que N situações podem acontecer. 

Pessoas não são máquinas. 

O diferencial das pessoas para as máquinas é justamente ter flexibilidade para variar o seu comportamento dependendo da situação que estiver acontecendo. Atuar sobre diferentes variáveis que estão presentes no dia a dia de trabalho é uma competência própria das pessoas que precisa ser treinada com conhecimentos e experiências que reforcem quais os princípios e valores que a organização deseja sustentar no dia a dia. 

Para atuar a partir desse entendimento sobre o erro humano, um dos pontos fundamentais é criar um ambiente de segurança psicológica em que as pessoas não sintam medo de falar sobre o que acontece nessa lacuna entre o trabalho prescrito e o trabalho real. 

Para isso, os líderes precisam abrir mão dos comportamentos de comando e controle e estimular mais a colaboração e cocriação de soluções com as pessoas, desburocratizando o sistema e convidando todos para desenvolver sua análise crítica para tomada de decisões. 

E qual é o ponto de partida?

A habilidade que mais precisa ser desenvolvida para oportunizar que os grupos experimentem a tão famosa segurança psicológica é a da escuta. É um desafio imenso para um líder forjado no comando e controle não dar as coordenadas, não emitir sua opinião, não dar a solução para o problema, segurar a sua ansiedade por dar velocidade nas respostas e, ao invés disso tudo, fazer boas perguntas e escutar – que significa muito mais do que deixar o som entrar pelos ouvidos.

Escutar significa levar em consideração aquilo que as pessoas falam e demonstrar curiosidade, apreciação e respeito pelo ponto de vista dos outros. Afinal de contas, não é em qualquer lugar e ambiente que nos sentimos à vontade para falar sobre os nossos erros. Somente em um ambiente em que verdadeiramente sabemos que seremos escutados sem crítica ou julgamento.

Quando Otto Scharmer explica os níveis de escuta da Teoria U, ele fala da importância de tomar consciência e ultrapassar alguns limiares de resistência que temos para poder escutar verdadeiramente às outras pessoas: 

Voz do julgamento – este é o primeiro limiar a ser superado. É uma triste realidade, mas infelizmente, na maior parte das vezes enquanto estamos escutando alguém falar, a nossa cabeça já está fazendo uma análise do quanto conhecemos ou não o assunto, elaborando as respostas ou fazendo outros pré-julgamentos. Sem necessariamente escutar o que efetivamente esta pessoa está tentando dizer. Silenciar o anseio em dar respostas, em fazer análises, em julgar, é o primeiro grande desafio para se ter uma boa escuta. 

Voz do cinismo – o segundo limiar é poder superar o cinismo de que somos melhores, maiores ou fazemos algo superior que as demais pessoas fazem ou falam. Quando eu escuto os outros preciso me colocar como vulnerável para falar daquilo que também não sou capaz de fazer ou dos meus próprios erros e medos. Somente dessa forma é possível ser empático e alcançar níveis de conversa que alcancem questões emocionais, sentimentais, para além de compreensões cognitivas, mentais e racionais. 

Voz do medo – o último limiar é a voz do medo. Medo de fracassar, medo de me expor diante do outro, medo de ser julgado. E esses medos todos são o maior obstáculo para criação de soluções inovadoras no ambiente de trabalho. Para superar essa voz do medo, é preciso ter ultrapassado as vozes anteriores até que as pessoas sejam capazes de expor o quanto sentem esses medos para que, juntos, possam entender como dissipá-lo. 

A separação didática dos desafios a serem superados para a prática da boa escuta é simples, mas a sua operacionalização prática envolve um dos maiores desafios que qualquer pessoa pode encarar na vida. Pois envolve um desapego egóico que todos temos ao que pensamos saber, à nossa opinião, à nossa competência, à nossa experiência, ao mesmo tempo que nos convida a uma entrega e confiança ao outro. O autodesenvolvimento segue como um caminho imprescindível para a evolução das pessoas, das organizações e da sociedade como um todo. 

Para encerrar, te convido a usar este texto para dialogar com seu time e com colegas de trabalho com a intenção de investigarem juntos como está o entendimento de vocês sobre esse eixo central que é o tema erro humano. Como vocês acreditam que podem evoluir pouco a pouco para alcançar a expansão desse entendimento no dia a dia da organização?

Se quiser conversar mais sobre este assunto, conte comigo.