Cada pessoa percebe uma parte da realidade

 

A percepção é um processo psíquico pelo qual as pessoas interpretam e organizam suas impressões sensoriais, visando dar significado aos materiais, pessoas, situações e ambientes. E nenhuma pessoa é capaz de perceber o todo, ter uma perspectiva “completa” dos fatos e situações, ou seja, cada pessoa terá uma perspectiva única de uma fatia da realidade que diz respeito ao que ela é capaz de interpretar.

E qual é a lição que tiramos disso?

Esta é uma segunda importante lição quando abordamos o tema de percepção de riscos: cada pessoa percebe uma “fatia” da realidade. Esta parte da realidade percebida por cada um de nós tem relação direta com a composição física dessa pessoa, com suas experiências de vida, com seus conhecimentos adquiridos e cultura geral. 

Isso parece bastante óbvio, no entanto, no dia a dia estamos o tempo todo desconsiderando esse conhecimento e achando que as pessoas percebem as coisas da mesma forma que nós.

Quer ver como isso acontece na prática?

Fazemos visitas na área fabril, onde as pessoas estão trabalhando, observamos situações de risco e afirmamos: como você que trabalha aqui todos os dias não percebeu isso? 

Compartilhamos fotos de equipamentos danificados e cobramos a responsabilidade das pessoas em “perceber os riscos” que nós percebemos. Dessa maneira, ignoramos o fato de que as pessoas percebem a realidade de formas diferentes. 

Em todo momento estamos tentando criar maneiras para que as pessoas percebam a realidade da maneira que nós desejamos que elas interpretem, por meio de procedimentos, regras, checklist e treinamentos que praticamente tentam impor uma forma de significar tudo o que as cerca. Esse fenômeno pode ser considerado uma projeção, que é uma característica própria da percepção, que frequentemente sofre algumas distorções. Vamos conhecer algumas delas?

Distorções mais comuns da nossa percepção

Percepção seletiva: São interpretações a partir dos seus interesses, expectativas e experiências. Exemplo: eu vou perceber que uma ferramenta oferece um risco maior ou menor, dependendo da minha experiência no manuseio dela que pode me trazer um excesso de autoconfiança ou certa atenção ao realizar a atividade, com o nível de conhecimento que eu recebo sobre o que devo fazer diante de riscos no contexto em que eu estou inserido (ambiente de trabalho) e das expectativas que existem sobre mim, sobre como devo lidar com riscos (figuras de autoridade).

Efeito halo: São impressões gerais de uma pessoa a partir de uma única experiência. Exemplo: afirmar que uma pessoa não é comprometida com segurança porque esteve envolvida em um acidente.

Projeção: São atribuições de características próprias a outras pessoas. Exemplo: por eu estar pouco envolvido com o tema de segurança, acabo julgando as ações de outras pessoas como pouco comprometidas com segurança.

Estereótipos: São juízos formulados a respeito de alguém, em função de participar de determinado grupo. Exemplo: fulano de tal não é cuidadoso com segurança, mas todo “motociclista” é assim. 

Efeito contraste: São interpretações das características de uma pessoa afetadas pela sua comparação com outra. Exemplo: quando comparo uma pessoa que é nota 7 em segurança (quantificando para ficar mais fácil de ilustrar) com alguém que é nota 5 em segurança, ela pode ser considerada ótima. Mas quando comparo a mesma pessoa com alguém que é nota 9, ela será considerada boa ou razoável.

Estes tipos de distorções também interferem na interpretação do nosso recorte de realidade, o que inclui a percepção sobre os riscos presentes nos ambientes de trabalho. Eu levanto a hipótese de que tentamos controlar estas distorções, bem como outras características naturais do fenômeno perceptivo, tentando impor às pessoas formas únicas (ditas corretas) de perceber e interpretar tudo.

Qual problema de tentar impor uma forma de perceber? 

A grande questão é que ignoramos o fato de cada pessoa perceber e interpretar a sua realidade, de acordo com características próprias, em especial quando se fala do ambiente de trabalho e dos seus perigos e riscos intrínsecos. Ao prescrever procedimentos e regras, nem sempre se considera o contexto real ao qual as pessoas estão submetidas, com todas as variáveis que operam em um dia de trabalho. 

É como tentar impor para uma criança de 5 anos as respostas que ela precisa dar a uma equação matemática de divisão numérica: ela não consegue compreender a resposta, muito menos a equação. Mas ela consegue entender questões que envolvem divisão de tarefas, porque foi ensinada a guardar seus brinquedos, a dividir a vez de usar um brinquedo, compartilhar seu lanche com colegas. Então, para alcançar o nível de resposta sofisticada na equação matemática, pode-se tentar escutar da criança o que ela entende por “divisão”? Em que momentos e situações da sua vida ela já teve que dividir algo com alguém? E a partir da percepção que a criança apresenta, construir conhecimentos e aprendizagens em conjunto com ela, partindo do seu nível de entendimento. 

É um exemplo simples, mas ilustra o que é necessário para que seja possível trabalhar com as percepções das pessoas em seus ambientes de trabalho, exercitando de dentro (dos indivíduos) para fora (realidade prática) um olhar crítico e uma busca por complementaridade das suas percepções, para uma atuação cada vez mais alinhada com o cuidado com a saúde e integridade física. 

Para que as pessoas desenvolvam sua capacidade de identificar e atuar sobre os riscos, é necessário que sejam estimuladas a desenvolver um pensamento crítico sobre aquilo que elas interpretam à sua volta. E isso não se dá por força de um procedimento ou por horas de capacitação, numa tentativa unilateral de impor uma forma “correta” de realizar as tarefas. Mas sim, oportunizando momentos de escuta das pessoas, em que elas possam compartilhar suas mais sinceras percepções e interpretações dos riscos contidos das suas tarefas laborais diárias. 

Neste momento, por meio da troca de experiências e percepções realizadas entre os integrantes de um grupo, é possível ressignificar algumas interpretações – ou seja, alguém que não considerava uma atividade arriscada, passa a perceber risco – recontratar algumas formas de atuar para minimizar riscos e realizar novos combinados de cuidados para com a saúde e segurança de todos. 

A troca é preciosa. 

Em resumo, se cada pessoa percebe uma “fatia” da realidade é imprescindível que sejam criados momentos e oportunidades de trocas de percepções entre as pessoas, de forma que as percepções individuais possam se alargar e ficar cada vez mais completas agregando olhares e perspectivas. Dessa forma também, voltamos a responsabilidade sobre a segurança para as mãos de cada pessoa, de cada trabalhador, depositando a confiança de que cada pessoa tem toda capacidade necessária para atuar sobre os riscos, se tiver as condições adequadas para partilhar percepções e recursos apropriados para atuar. 

Deixo aqui algumas perguntas de reflexão sobre como você pode atuar para melhorar a percepção de riscos das pessoas:

  1. Você tem oportunizado momentos de escuta e convidado as pessoas a falar sobre os riscos que elas percebem ao realizar suas tarefas?
  2. Você tem destacado os aprendizados e combinados que surgem a partir dessa importante troca de percepções?
  3. Como você tem aproximado o trabalho prescrito do trabalho efetivamente realizado pelas pessoas? 
  4. Qual tempo você tem dedicado para estar junto com as pessoas em seus ambientes de trabalho, contribuindo com suas percepções de alguém que está fora do contexto?

Na nossa palestra sobre percepção de riscos, nosso personagem Tulio aborda esta importante lição! Se quiser saber mais, clica aqui: Palestra 5 lições chave sobre Percepção de Riscos