Assim como o comportamento humano, a percepção de riscos também é altamente influenciada pelo contexto coletivo. Do ponto de vista do entendimento cognitivo, parece que a maior parte das pessoas já compreendeu isso. Mas e quando falamos daquelas crenças mais arraigadas, que aparecem em momentos críticos, como no caso de uma ocorrência?
Será que nesse momento somos capazes de realmente acreditar que a resposta para que a gente possa ter um ambiente mais seguro está na melhoria do contexto de trabalho?
Como vimos em outros textos mais introdutórios, os conceitos de percepção e de risco são carregados de subjetividades, que variam dependendo de questões individuais e do contexto para serem interpretados.
No entanto, quando olhamos para a questão da avaliação, análise e controle de riscos que são esperadas dentro das organizações, temos um desejo profundo de ter respostas objetivas para isso, não levando em conta esse fundamento de subjetividade desse fenômeno psíquico.
Em 2023 temos espaço para abordar o “contexto coletivo”?
As análises e investigações de acidentes continuam sendo realizadas como um conjunto de provas jurídicas para defesa das empresas provando que fizeram tudo o que era possível para que o acidente não acontecesse, mas que o indivíduo, ainda assim, se machucou porque lhe faltou “percepção de riscos”. E para que isso não aconteça mais, o plano de ação é um novo treinamento no procedimento ou na planilha de avaliação de riscos – como se isso pudesse objetivamente consertar a “percepção de riscos” do sujeito.
Infelizmente esta ainda é uma constatação frequente em várias organizações em pleno 2023, apesar do tanto de conhecimento sendo construído e difundido sobre o quanto essa narrativa de responsabilização e de construção de planos de ação sobre o indivíduo é ultrapassada.
Entendo que o resultado das investigações e análises de acidentes são também um reflexo da maturidade e abertura que os níveis mais altos de liderança da empresa estão dispostos a lidar. Não será possível encontrar causas do contexto e sistêmicas num relatório de investigação, enquanto não houver segurança psicológica e uma mudança na reação da liderança quanto a buscar as verdadeiras causas para as ocorrências, muito mais do que um documento de defesa da empresa.
Mas afinal, quando se fala de contexto coletivo, do que exatamente estamos falando?
Acredito que esta pode ser uma grande “virada de chave” para uma atuação mais consistente na prevenção de ocorrências e promoção de saúde e segurança dentro das empresas. Quando entendermos quais são os elementos que efetivamente influenciam a percepção de riscos e consequentemente os comportamentos das pessoas em segurança do trabalho.
Pretensiosamente vou tentar esclarecer um pouco este conceito, a fim de trazer um pouco mais de repertório prático para que os profissionais de diferentes áreas possam começar a refletir melhor sobre diferentes aspectos que merecem nossa atenção e dedicação. E quero iniciar dizendo que é absolutamente difícil abordar o contexto coletivo de forma linear, defini-lo e delimitá-lo. Isso porque compreendo que o contexto se refere a uma interrelação entre fatores que emerge de uma série de contingências próprias de cada cenário organizacional, e que, portanto, merece ser estudada, investigada e trabalhada de forma personalizada, única.
Alguns fatores podem ser investigados e mais bem compreendidos em sua dinâmica própria, quando estamos abordando o contexto coletivo. Partindo de uma perspectiva macro (organizacional) para o olhar micro (individual):
Do ponto de vista da natureza do negócio da sua empresa, o quanto você considera que o seu processo produtivo depende da tomada de decisão e da ação humana e o quanto ele está mais centrado nas tecnologias, independente do humano? Esta é uma primeira e importante reflexão, e quanto mais o seu negócio “depende” da ação humana, mais importante se torna você se especializar em abordagens e tratativas que envolvam as pessoas nas soluções de problemas e tomadas de decisão.
Aqui está uma questão que definitivamente não está relacionada às comunicações escritas nas paredes das empresas. Mas o quanto a forma como nos relacionamos com as pessoas dentro das organizações está condizente com o que está belamente escrito. O quanto as pessoas da operação sabem falar sobre quais são os valores que percebem “vivos” dentro daquela organização e se percebem que os comportamentos das pessoas e decisões tomadas seguem algum padrão ético.
O quanto nossas políticas e procedimentos de segurança estão claros e acessíveis – dentro do limite de ação que eles têm, compreendendo que o trabalho prescrito é diferente do trabalho real – como uma forma de trazer uma diretriz básica de como agir para realizar suas tarefas.
O quanto a organização está interessada (e tem necessidade – dependendo da natureza do negócio) em desenvolver as capacidades e suportar a atuação das pessoas na realização das atividades de forma segura. Conseguir proporcionar um ambiente de aprendizagem contínua dentro de uma organização que tem uma alta dependência humana e baixa tecnologia no seu processo produtivo é vital. E escolher as melhores estratégias para criar esse ambiente é uma decisão que está nas mãos dos altos líderes da organização. Imprescindível que eles também tenham acesso a este conhecimento para que tomem decisões assertivas.
Dar suporte adequado em termos de capacitar as pessoas para desempenhar adequadamente suas tarefas e funções é uma outra responsabilidade crítica da organização. E um dos fatores que considero mais críticos quando estamos falando deste aspecto de suporte, é a gestão de mudanças. Infelizmente isso ainda é um fator bastante ignorado pelas empresas e, no meu ponto de vista, diante da experiência que tenho observando os movimentos das organizações, noto que é um dos fatores que mais gera impacto na questão de saúde e segurança das pessoas. De que forma lidamos ou preparamos as pessoas para vivenciar determinadas mudanças dentro do contexto da empresa? Os altos líderes muitas vezes são os que tomam decisões que irão impactar na rotina das pessoas: desde uma fusão da empresa, mudança de presidente, alteração no processo produtivo, startup de um novo equipamento, mudanças na estratégia de retenção de pessoas – que vai gerar um turnover alto – ou ainda uma simples decisão por aumentar um volume de horas extras para dar conta de uma demanda pontual de produtividade, aproveitando oportunidade de mercado. E são eles que precisam expressar seu desejo de que estas mudanças sejam melhor gerenciadas internamente na organização. A forma como a organização lida com a mudança, demonstrando maior ou menor cuidado, vai “comunicar” mensagens para as pessoas que irão impactar na forma como serão percebidos os riscos, e consequentemente, na sua atuação.
Observar como os recursos necessários para realizar as atividades e tarefas na linha de produção são disponibilizados e cuidados é um outro fator que influencia fortemente na percepção e riscos das pessoas. Aqui leva-se em consideração os equipamentos, máquinas, ferramentas, substâncias químicas e o próprio número adequado de pessoas para realizar determinadas tarefas. Quando temos estruturas muito deterioradas, há um impacto muito negativo na percepção de riscos, pois as pessoas começam a significar este ambiente deteriorado como “normal” sem ter a possibilidade de agir de forma diferente. Bem como quando há uma sobrecarga de trabalho sobre uma pessoa mais experiente porque tem muitas pessoas novatas no setor, também irá baixar a percepção de riscos desse profissional pelo volume de trabalho. Esses são alguns exemplos simples que ajudam a compreender de que forma os “recursos” influenciam a percepção de riscos.
Na mesma linha, a temperatura, umidade, iluminação, ruído, limpeza e layout também são fatores que precisam ser cuidadosamente analisados para entender o quanto estão favorecendo ou não a percepção de riscos dos indivíduos na realização de suas tarefas.
A tarefa tal como ela acontece na realidade e o quanto ela sofre influência de variáveis diferentes na sua realização é algo que precisa ser considerado como um fator crítico de influência na percepção de riscos das pessoas. Quanto mais a tarefa pode variar – de acordo com o tipo de matéria prima, com variações climáticas, com a estabilidade do próprio processo produtivo – as pessoas que realizam a tarefa precisam de maior ou menor qualificação para perceber essas variações e tomar decisões a partir de uma análise crítica que precisa ser desenvolvida.
E por fim, não menos importante, as características pessoais para atender às especificações do cargo, aspectos fisiológicos, psicológicos, de comunicação e cooperação. Quanto mais adequado o perfil da pessoa ao tipo de atividade que ela realiza, a tendência é que reúna melhores condições para perceber os riscos e mudanças que acontecem à sua volta.
Para encerrar
Note que explorei aqui neste curto texto 8 fatores que podem ser melhor observados na sua organização com a finalidade de tentar encontrar aspectos do contexto coletivo que podem receber melhor atenção e dedicação de forma que influencie positivamente a percepção dos riscos e a tomada de decisão das pessoas. Uma análise como essa dentro da sua empresa precisa levar em consideração as interrelações entre estes aspectos e como tudo isso impacta a sua organização de forma bem específica. Estes são fatores que também podem ser melhor investigados durante os processos de análise e investigação de ocorrências na busca de aprofundar melhor quando temos a tentação de constatar que uma das causas é “percepção de riscos”. Podemos ter coragem de perguntar: o que pode ter influenciado a pessoa a não perceber os riscos? E explorar estes 6 fatores, como uma possibilidade de começar ampliar nosso olhar na busca das causas efetivas das ocorrências.
Espero que este texto tenha contribuído para agregar conhecimento quanto ao entendimento sobre o contexto coletivo e como podemos atuar sobre ele, na busca por ter uma dinâmica de percepção de riscos condizente com a sua natureza subjetiva.
Caso você queira fazer algum comentário ou me encaminhar alguma dúvida, ficarei muito honrada em poder te responder.
Referências
https://www.linkedin.com/pulse/fatores-humanos-e-organizacionais-na-constru%25C3%25A7%25C3%25A3o-da-moderna-monteiro/
https://www.linkedin.com/pulse/evolu%C3%A7%C3%A3o-na-percep%C3%A7%C3%A3o-de-riscos-pelos-fatores-humanos-monteiro/?originalSubdomain=pt